quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Pascal fez uma curta anotação num dos seus cadernos: "Deus de Jesus Cristo, não o Deus dos filósofos".

Esse Deus que dá prêmios aos bons e castigos aos maus é, com certeza, o Deus dos filósofos, nascido das exigências lógicas. Deus de Jesus Cristo - é certo que ele não é. Pois ele, absurdamente, faz o seu sol nascer sobre bons e maus, e a sua chuva descer sobre justos e injustos. O Pai não soma créditos. O Pai não soma débitos. Está lá dito, na parábola chamada O filho pródigo.
Por que Deus nos faz sofrer? Respondem outros que é por razões pedagógicas. O sofrimento nos torna melhores. O sofrimento nos faz evoluir. É a pedagogia da palmatória: as crianças aprendendo não pelo amor ao saber mas pela dor. É a filosofia das penitenciárias: pelo sofrimento os homens maus ficam bons. E assim poderíamos contemplar o maravilhoso espetáculo: pela porta de entrada das prisões, entrando, os criminosos de rosto duro e cruel. E muitos anos depois, após sofrimentos sem medida, pela porta de saída, saindo, os rostos angelicais dos que haviam entrado como criminosos, transformados pelo poder da dor.
Não, não é verdade que o sofrimento torna melhores as pessoas. O sofrimento freqüentemente embrutece, tira a sensibilidade, tira a esperança, torna cruéis as pessoas. Um Deus - ou força cósmica – que usasse o sofrimento para a evolução seria muito curto de inteligência - não saberia aquilo que os homens aprenderam: que a única força capaz de fazer as pessoas ficarem melhores é o amor. E que sentido haveria em falar de evolução em relação à criancinha que sofre e morre sem ter tempo de viver? E chegaríamos então à ridícula conclusão de que os que não estão sofrendo são espíritos evoluídos, que não precisam da pedagogia da tortura, enquanto os que estão sofrendo são espíritos atrasados.
E aí eu me horrorizo com um universo assim, que seja movido pela dor dos homens. Me horrorizo com um Deus - ou força cósmica - onipotente. É impossível amá-Io! Somente um demônio seria capaz de imaginar um universo movido a dor! (Prefiro imaginar que o universo seja movido pelo poder do amor e da alegria!).
Estou olhando um pôster, pendurado na minha parede, de um vitral da catedral gótica de Chartres: a Nossa Senhora Azul, com o Menino Jesus. É de grande beleza! Na minha fantasia, de repente, uma pedra vinda do vazio parte o vitral. Os cacos coloridos se espalham pelo chão. Foi-se a beleza! Foram-se o rosto da Madona e o da criança. Gritam as pessoas: "Por quê?" Respondem as explicações religiosas: "Foi Deus que jogou a pedra." Seria possível amar um Deus assim? Mas, do vazio - voz de herege - se ouve outra resposta: Não há resposta. Não há um "porque" que responda ao "por quê?" Não há razões. Ninguém lançou a pedra. Deus não lançou. Deus não queria. Ele amava o vitral. Está triste. Foi acidente. Um meteoro. Nem tudo é Deus que faz. Poderia ter caído em outro lugar. A dor é simplesmente dor, sem sentido, sem um divino fim.
E aí, olhando para os cacos do vitral espalhados pelo chão, sem sentido, vê-se um vulto, catando os cacos, um a um, e pacientemente os arranjando de novo, como um quebra-cabeça.
Num Deus assim eu gostaria de acreditar. Um Deus assim eu poderia amar. E até me juntaria a ele, ajudando-o a catar os cacos.

Rubem Alves

Um comentário:

  1. Hoje estou profundamente triste.. Mas creio no Deus soberano que permite que coisas difíceis aconteçam... Porque não nos fez robôs o androides.. nos fez humanos, mas nos ajuda a catar os cacos quando os vitrais das circunstancias se quebram...

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Obrigada por este comentário. Deus te abençoe!